Literatura de Verdade

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Funcionário terceirizado pela Lucas Corp.

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Retorno ao trabalho após a primeira semana de pai e, apesar do cansaço, me deparo com um intrigante sentimento de empolgação. Quero abraçar todo mundo. Quero ajudar todo mundo, consolar todo mundo, divertir, entreter, mais do que o normal, mais do que nunca, e meu receio é exagerar, atrapalhar, me tornar impertinente. Quero celebrar. Tenho vontade de fumar um charuto, tossir por causa do charuto, me arrepender por ter fumado o charuto, ser obrigado pela mulher a tirar o cheiro de charuto da roupa do bebê, botar a caixa de charutos pra vender no Mercado Livre e, após dias de insucesso, acabar jogando os charutos na lata do lixo. É que eu estou sob nova direção, funcionário terceirizado pela Lucas Corp, uma start-up criada há pouco mais de uma semana que está revolucionando o meu mercado. Sigo com as mesmas competências, mas muito mais vontade, muito mais responsabilidade. E olha que, modéstia às favas, como diria um ministro supremo, (informe publicitário:) disciplina e disposição nunca foram um problema para mim. Mas o CEO da nova start-up deve estar colocando algum tipo de energético na água da empresa, porque de repente eu senti vontade de pegar o caminho para Wigan Pier ao lado de George Orwell e extrair carvão por 30 dias seguidos — sem direito a hora extra ou intervalo para o almoço — com um sorriso lunático estampado no rosto enquanto o misericordioso escritor, que lamenta as dores nas suas juntas e limpa as mãos sujas de manteiga no carrinho de transporte do carvão, tenta me convencer de que o problema do socialismo é o socialista. Eu concordo, respondo a Georgie, mas digo que ele pega pesado com os socialistas, porque o problema do socialismo é maior, mais amplo, é o próprio homem, mesquinho, individualista, medroso, desconfiado, irascível, indomável, imprevisível, agressivo, rebelde, potente, independente, inventivo, criativo, surpreendente, livre, maravilhoso, fascinante, apaixonante. Ao deixarmos as minas de carvão da Inglaterra do início do século 20, cruzamos com Hayek numa encruzilhada e, no meio do redemoinho, pegamos a contramão do caminho da servidão, rumo a 2084, sem duplipensar; aliás, com um pensamento só: trabalhar para pagar o leitinho da criança. Será esse o verdadeiro motor do sistema? Minúsculos burgueses nos fazendo levantar da cama todos os dias com um propósito que obriga (ou permite) encontrar sentido em qualquer serviço, do mais burocrático apertar de um parafuso ao mais empolgante carimbar de duas vias com firma reconhecida? Ah, Engels já fez muita manha sobre isso, esperneou um livro inteiro sobre a origem da família, da propriedade privada (e do penico) e do Estado. Convenhamos, quem gosta de comer brócolis? Quem gosta de ter hora para dormir, tempo contado para jogar videogame? Michelzinho Foucault giraria seu fidget spinner eternamente se não houvesse alguém para vigiar e puni-lo. Mas é para o seu bem, Michelzinho, larga essa chupeta. Ouvi de uma amiga que minha satisfação — e a euforia de meus pais e sogros — com a chegada do meu filho se deve à perspectiva da descendência, da permanência, o cumprimento do destino natural, evolutivo. Concordo. Tenho andado muito naturalista, darwineio o dia inteiro sobre os mistérios da evolução. Enxergo origens ancestrais em tudo e todos e me acalmo. As coisas não são do jeito que são porque algumas pessoas más ou boas assim o determinaram, mas porque, por pior que seja, é o melhor que conseguimos fazer. Nessa perspectiva histórica, me percebo no meio de um caminho muito longo, que eu não teria tempo de percorrer sozinho, porque me faltariam anos, décadas, séculos, milênios — será por isso que as questões políticas se tornaram tão urgentes, só porque passamos a ter menos filhos? Dei mais um passo, portanto, e, por isso, não posso me permitir dar sequer mais um passo em falso, até que a descendência possa andar com as próprias pernas. É por isso que agora me preocupo mais com a minha saúde e fiz até um seguro de vida. Por isso também que passei a atravessar a rua apenas com o sinal fechado, mesmo sem ter carro passando. Não há seguro de vida que compense meu tipo ou tempo de serviço na Lucas Corp. É por isso que eu falo nisso todo dia. A herança, a segurança, a garantia, pra mulher, para o filhinho, pra família, eu falo nisso todo dia.

Written by Rodolfo Borges

Julho 22, 2019 at 9:59 am

À meia-noite mamarei sua alma ou Guia informal de amamentação para pais e adjacências

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Mamarei sua alma, e você vai gostar

Você deve agir como um prático, manobrando um transatlântico minúsculo em direção ao encaixe perfeito no porto, no peito. A boa execução da sua tarefa depende do reconhecimento de que você é um acessório, um opcional, e se essa lição for bem apreendida, valerá para as outras tantas funções que você exercerá em relação a sua família — e por que não incluir o seu país ou o mundo inteiro nisso? Como seu bebê recém-nascido não enxerga direito e, ao contrário de boa parte dos mamíferos, não consegue sequer se locomover sozinho nos primeiros meses de vida, você deverá atuar como seus olhos e pernas e nariz, e terapeuta. Os youtubes e spotifys da vida estão repletos de sons do útero para executar terapia de regressão, até a semana passada — alguns dos sons oferecidos se assemelham mais a uma correnteza, mas o importante é que o bebê cai no truque. A tática do charuto, em que você enrola seu bebê em panos como se fosse um escravo, ou melhor, um satisfeito, saudável, bem alimentado e livre cubano formado em medicina, também o ajuda a relaxar — como eles não controlam as mãos e as pernas, sempre que estão com os membros soltos sentem-se em queda livre, porque perderam a referência do útero, comenta-se. O mais relevante, contudo, é obedecer à mãe do seu filho. Faça tudo o que ela quiser: alcance um copo d’água, mude o canal da televisão, massageie seus pés, vá comprar pão, ponha a mesa do café da manhã, tire a mesa do café da manhã, ponha a mesa do almoço, tire a mesa do almoço, cozinhe (antes disso, é aconselhável aprender a cozinhar), peça comida pelo aplicativo, cante uma música para acalmar o bebê, componha uma música para acalmar o bebê, sapateie para acalmar o bebê, recite Shakespeare para acalmar o bebê, encene Les Misérables para acalmar o bebê, ganhe um Prêmio Tony por acalmar o bebê. Para além disso, você não terá muito o que fazer. A não ser que a mãe esteja enfrentando algum problema para amamentar. Nesse caso, você não terá de lidar apenas com a irritação do bebê, mas com a decepção da mãe. Você precisará lembrá-la do óbvio: a culpa não é dela, nem do seu filho, nem de ninguém. Não se trata de culpa, mas da alimentação do bebê, que, quando feita de mamadeira, é mais fácil, apesar de oferecer menos do que o leite materno e o contato com a pele da mãe têm para dar. Difícil é ajudar a mãe a lidar com a frustração de suas expectativas. É por isso que você tem de ser perfeito ao lado dela. Não é agora que você vai virar um problema, certo? Ela já vai estar cansada o bastante por não poder revezar a amamentação com o marido ou a mãe dela ou qualquer outra pessoa no mundo todo, então você pode trocar as fraldas do bebê, e oferecer-se para embalá-lo à espera do arroto — sempre se ofereça para segurá-lo à espera do arroto. E esteja ao lado dos dois sempre que possível, para fins de apoio moral. Principalmente quando à meia-noite ou às 2h ou 4h da madrugada ele acordar verde de fome e esticar a boquinha para mamar suas almas. Se o peito não for o bastante para aplacar a ira do pequeno Hulk, não é hora para heroísmos. A famigerada chupeta é uma espécie de kriptonita para o Hulk ou algo assim — papai nunca foi muito bom de super-herói. Uma arma de acalmação em massa. Os anglo-saxões não a chamam de pacifier (pacificadora) por acaso. Mas o melhor de tudo é que, fora uma conversa ou outra com amigos que tiveram filhos, as dicas das enfermeiras da maternidade, os palpites dos parentes e algumas centenas de buscas por instruções de conduta na internet, você vai se dar conta de tudo isso que eu falei por conta própria. Foi assim comigo. Escreva seu próprio manual. Mas, pelo amor de Deus,  não pare de cantar. I dreamed a dream in time gone by / When hopes were high and life worth living / I dreamed that love would never die / I dreamed that God would be forgiving. Desce o pano (ou a fralda, o que estiver mais à mão — rápido)!

Written by Rodolfo Borges

Julho 16, 2019 at 9:35 am

Publicado em Crônica

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Quando seu filho nascer sem respirar

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Quando seu filho nascer sem respirar, você terá poucos pontos onde sustentar os próprios olhos. O mais relevante será o corpinho dele, para o qual você vai olhar em busca de um movimento que compense a falta do choro, um espasmo, um sinal de vida qualquer. Caso o débil fechar de seu olhinho esquerdo ao ser colocado sobre uma mesa para reanimação não seja o bastante para te consolar, será preciso buscar os olhos do pediatra enquanto você desliga a câmera do telefone. Você provavelmente também vai procurar consolo nos olhos do médico que tirou o bebê de dentro da sua mulher, mas os olhares de esguelha do doutor para o pequeno, entre um ponto e outro aplicado na barriga da recém-nascida mãe, terão o efeito contrário: a sensação do imprevisto, do imponderável, a incerteza e a insegurança se dispersarão pela silenciosa sala de cirurgia. E mesmo sem ter onde se agarrar, mesmo flutuando pelo quarto frio, você precisará sustentar os olhos da sua mulher, que, enquanto o bebê é reanimado, só tem você, que está na cabeceira da mesa de cirurgia, para se apoiar. Você dirá a ela que está tudo bem enquanto toca sua testa, simplesmente porque, ainda que o bebê não esteja respirando, o pior é impensável. Essa possibilidade não existe, nem se pronuncia, o trabalho de parto ia bem demais até aquele ponto, até o bebê exigir força demais da mãe, por estar cruzado, e a cesariana, o procedimento mais controlado possível, entrar em cena. Depois de assegurar a ela que está tudo bem, você voltará a olhar para o pediatra, que estará convocando alguma superior — ou pelo menos soará como uma superior — enquanto introduz e puxa sondas pelo nariz do seu filho, de onde sai líquido vermelho. O pediatra pegará um tubo maior, transparente, e bombeará ar pelas narinas do seu filho. Por sete minutos, você será informado depois. Seu filho terá ficado sem respirar por um minuto eterno e terá respirado com ajuda de aparelhos pelos sete minutos seguintes. Ele só vai começar a chorar no oitavo minuto de vida. Mas o bracinho esquerdo se mexerá antes, e você responderá mais uma vez a sua mulher que está tudo bem, que ele já mexeu o bracinho, que ela precisa relaxar depois de nove horas de trabalho de parto. Talvez porque a situação já esteja controlada, porque o pior já passou, o pediatra vai se dispor a preocupar-se com os pais, e os encarará pela primeira vez para dizer que está tudo bem, que ele já vai explicar o que acabou de acontecer. É quando tudo parecer bem que você enfim se permitirá duvidar. Só então você pensará na possibilidade de o pior ou de pelo menos algo de ruim acontecer. O pediatra já terá trocado o tubo de respiração mais agressivo por um nebulizador e dirá que o bebê respira bem, mas que ainda está muito agitado. De fato a barriguinha estará ofegante, porque vive, quer viver. Seu filho não chorará mais, foi muito rápido, mal dará para pegar o celular para gravar o som, atendendo ao pedido da sua mulher. Seu filho será transferido para uma incubadora e você dirá à mãe dele que vai acompanhá-lo, e ela obviamente concordará. Você é uma rocha, inabalável, resiliente — o que poderia fazer senão manter a calma? Você só vai chorar quando estiver tentando descrever o que aconteceu, ao escrever, para se organizar, para se entender, para se reconstruir, três dias depois. No caminho para a UTI, você vai tentar retirar alguma garantia da equipe médica. Aquilo foi um susto, ele já está respirando, certo? Mas o médicos não poderão garantir nada; eles vão precisar fazer exames, investigar seu bebê por pelo menos 48 horas. Qual seria o maior risco? Neurológico. Ele pode ter ficado sem respirar dentro da barriga. Você dará uma última olhada no seu filho e enxergará o próprio reflexo sombrio e impotente na incubadora. Sem o auxílio da equipe médica, tentará se encontrar pelos corredores do hospital para dizer a sua mulher, assustada, sem informação, já entregue às lágrimas, que foi tudo um susto, que está tudo bem pelo que você pôde sentir. Vai ficar tudo bem. É o que você disparará para todos os seus contatos telefônicos, para a família e os amigos que acompanhavam o processo quase em tempo real até as 19h35 do dia 8 de julho de 2019, quando parou tudo e faltou fôlego. Depois de tranquilizar todo mundo, você retornará à UTI neonatal e ouvirá que o teste do sangue retirado da placenta afastou o primeiro risco: não há sinal de que o bebê deixou de respirar dentro da barriga. Só então você vai tirar a primeira foto dele, para mostrar a sua mulher. Ela só vai poder vê-lo pessoalmente depois que retirar a sonda urinária, por conta das normas da UTI. Depois de se instalar no quarto com ela, você voltará mais uma vez à UTI, onde enfim olhará em volta e começará a perceber que os outros bebês são bem menores do que o seu. Isso só pode ser bom para seu filho. Melhor ainda: a pediatra de plantão dirá na segunda ou terceira visita (quem estará contando?) que os eletrodos não identificaram nenhuma sequela neurológica. Isso vai acontecer por volta de 0h30, próximo da marca das primeiras seis horas de vida do seu filho, o período-chave para a manifestação de algum problema. Você já estará deitado, tentando dormir no sofá de uma suíte do melhor hospital da cidade, do Brasil, da América Latina (o que poderia dar errado?), quando o telefone fixo tocará. Será exatamente à 1h35 de uma terça-feira. A pediatra da UTI neonatal perguntará se você é o pai e dirá que foram feitos todos os testes, lentamente (por que tão lentamente?) descreverá o que foi investigado para só então dizer que está tudo bem. Aliás, que parece estar tudo bem. Não se pode garantir nada — ninguém nunca poderá garantir nada. Ele seguirá por lá sob observação. O dia seguinte, que será o mesmo dia interminável da véspera, começará cedo, com mais uma visita à UTI e mais notícias boas. O bebê seguirá evoluindo em meio a prematuros de aspecto muito mais debilitado do que o dele. É como se seu filho não devesse estar ali. Terá quase o dobro do tamanho de sua cabeluda vizinha de incubadora. Provavelmente receberá alta em 24 horas, e não nas 48 estipuladas inicialmente. Você disparará mais mensagens, acalmando todo mundo, e, ao fazê-lo, se acalmará também. Na primeira chance, você tirará uma foto de seu filho sem respiradores ou eletrodos na cabeça, para mostrar ao mundo que ele existe, que é o bebê mais lindo que você já viu. Será apenas na tarde daquele dia que a mãe o pegará no colo pela primeira vez e para sempre, e que o pai vai recear pela primeira e última vez segurá-lo nos braços. Ao fim desse dia seu filho receberá alta e irá para a suíte do hospital com os pais. E toda a família suspirará enfim, junto com o bebê. Se você tiver sorte. Eu tenho muita sorte.

Written by Rodolfo Borges

Julho 12, 2019 at 6:53 pm

Publicado em Crônica

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